quarta-feira, 20 de abril de 2011

GETÚLIO E A REVOLUÇÃO DE 30

A Revolução de 3 de outubro de 1930 é um dos movimentos políticos brasileiros menos conhecidos e mesmo assim, dos mais criticados. Os conservadores, que detestavam Getúlio Vargas, e pisam ainda a sua memória, relacionam-na com o Estado Novo, mas é necessário entender as circunstâncias daquele tempo. Getúlio foi Ditador, e aceitava o título. Ele não pediu a ninguém que empregasse eufemismos durante o seu primeiro período de governo, que vai de 10 de novembro de 1930, quando recebe oficialmente o governo da Junta Militar, à promulgação da Constituição de 16 de julho de 1934. Transformada a Constituinte em Câmara dos Deputados, ele foi eleito de forma indireta, como previa a Carta, para cumprir o mandato até as eleições marcadas para 1938. Entre 10 de novembro de 1937 e 29 de outubro de 45, com o Estado Novo, preferiu ser chamado “Chefe da Nação”.

A Revolução de 30 amadurecera durante a década anterior, em que, pela primeira vez no Brasil, a questão social passou a ser vista como um problema nacional. Os trabalhadores do Rio e de São Paulo, com a participação dos imigrantes anarco-sindicalistas, intensificaram as suas reivindicações, iniciadas nos últimos anos do século 19 – que foram os primeiros da República. O inconformismo dos tenentes e de ponderáveis forças políticas civis, já nos meses finais de 1929, acabou confluindo na idéia de nova agremiação política, a partir de entendimentos regionais, com a Aliança Liberal. É de se lembrar que os jovens tenentes se sublevaram em 22, em Copacabana e, em 24, na rebelião de São Paulo. Seus remanescentes constituíram a Coluna Prestes e – com algumas exceções – se somaram a Vargas no movimento armado de outubro.

É corrente a versão de que a Revolução de 30 surgira do rompimento de um compromisso político entre São Paulo e Minas. O mineiro Arthur Bernardes, como presidente no quatriênio 1922-1926, apoiara a candidatura de Washington Luis, então governador de São Paulo, à sua sucessão; em troca, caberia a Washington promover a candidatura de Antonio Carlos Ribeiro de Andrada, governador de Minas, à presidência, nas eleições de 1930. Conservador convicto, ele decidiu lançar, como seu sucessor, Júlio Prestes, então governador de São Paulo. As oligarquias paulistas não queriam alternar o poder com os mineiros. Podemos dizer que esse fator político pode ter sido o estopim do movimento – mas as razões maiores estavam no envelhecimento da República oligárquica e na emersão das classes médias urbanas. O grande lema de Washington Luis, representante das oligarquias rurais o identificava: “a questão social é um caso de polícia”. E foi com a repressão policial contra os trabalhadores que garantiu os privilégios das oligarquias. Desde o acordo de Taubaté, os Estados formavam estoques de café, a fim de manter os preços. Em razão disso os fazendeiros aumentavam a produção, enquanto os governos se endividavam, com dinheiro de fora e os investimentos estatais minguavam, enquanto a situação social se agravava. Com dinheiro fácil, os aristocratas paulistas - como lembrou Yan de Almeida Prado -, viajavam sempre para Paris, a fim de escapar da algaravia dos imigrantes. Os bancos estrangeiros propuseram ao presidente Arthur Bernardes que pagasse a dívida externa com a privatização e desnacionalização do Banco do Brasil e da Estrada de Ferro Central do Brasil. O mineiro, que era nacionalista, respondeu asperamente que não.

A plataforma de Vargas, como candidato da oposição, lida em janeiro de 30, na Esplanada do Castelo, no Rio, ousava atacar os poderosos e destacava a necessidade de enfrentar-se a questão social e de tornar menos cruel a vida dos trabalhadores urbanos e rurais. Até então – disse à multidão que o ouvia - o Estado favorecera os ricos, e era chegada a hora de cuidar dos pobres. Mais ainda: colocava o desenvolvimento econômico como o único caminho para a soberania nacional e falava em aço, em petróleo, em mineração, em energia elétrica, em indústria química.

A Revolução de 30, mesmo com o autoritarismo, que era a ideologia da década (tanto à esquerda, quanto à direita), trouxe o Brasil para o século 20, e abriu caminho ao desenvolvimento posterior. Há, entre o País daqueles anos e o de hoje, notável coincidência. O Brasil, já em 1934, foi o primeiro país da América – bem antes dos EUA - a sair da crise de 29, da mesma maneira que foi o primeiro a superar a crise do ano passado.

DA DESIGUALDADE ENTRE OS ANIMAIS

Eric Arthur Blay - um dos revolucionários dos anos 30 que se desiludiram com o regime stalinista - foi, sob o pseudônimo de George Orwell, sério combatente contra o totalitarismo. Sua fábula Animal Farm popularizou a frase sempre repetida, para definir a impunidade dos governantes: todos os animais são iguais, mas alguns animais são mais iguais do que os outros. A moral é óbvia: todos os homens são iguais, mas alguns deles são mais iguais do que os outros. Sílvio Berlusconi, pelo fato de ser primeiro ministro da Itália, foi considerado, por seus advogados, primus supra pares, e, não, inter pares, ontem, quando se reuniu a Corte Constitucional, em Roma, a fim de examinar a constitucionalidade da Lei que o desiguala. Tal como em outros países, que conhecemos, há a intenção de blindar os ocupantes de altos cargos públicos contra as leis penais. É a reminiscência da irresponsabilidade dos reis, característica das monarquias. Os reis se consideravam acima das leis que, além disso, beneficiavam a nobreza e o clero no confronto com os pobres. Rex est lex, disse James I ao Parlamento, abrindo a cisão que, depois de sua morte, levaria o filho, Charles I, ao encontro do carrasco. A República consagra o enunciado contrário, o de que Lex est Rex: a lei é soberana. É – ou devia ser – como estamos vendo na Itália e alhures.
A Corte Constitucional decidirá hoje - se é que decidirá, tantos são os interesses que escoram o clownismo do magnata e político milanês – se na Itália Lex est Rex, ou não. A decisão é do interesse direto dos italianos, que se dividem entre os que preferem pagar o preço do conformismo, e os que não suportam mais o debochado Berlusconi na chefia do governo. A eles, no alto tribunal, ou fora dele, caberá decidir, de acordo com sua soberania, o destino do premier e o destino da República. O mais importante é pensar no princípio fundamental do direito, que torna todos os homens iguais diante da lei, e a tentativa de recuperação, pelos governantes republicanos, do privilégio dos reis absolutistas. No Brasil, tivemos, com a constituição imperial, a presença do poder moderador e a impunidade absoluta do soberano. O artigo 99 é claro: A Pessoa do Imperador é inviolável, e Sagrada: Ele não está sujeito a responsabilidade alguma. Não obstante isso, os Ministros de Estado (artigo 133) estavam sujeitos à responsabilidade pelos crimes de traição, peita, suborno e concussão; pelos atos contra a liberdade, a segurança e a propriedade dos cidadãos e pela dissipação dos bens públicos. O artigo 135 era duro: Não salva aos ministros da responsabilidade a ordem do Imperador vocal, ou por escrito. Em suma, os ministros tinham que obedecer ao monarca; no caso em que, ao obedecer-lhe, cometessem um ilícito, não podiam recorrer ao dever da obediência. A inviolabilidade dos reis, como sabemos, era imposta pelas leis e pela tradição. Isso não os livrava dos complôs palacianos para matá-los, nem da justiça do povo, que se exercia, como se exerceu, nas duas grandes revoluções da Idade Moderna, na Inglaterra de 1640 a 1649, e na França de 1789 a 1799. Em ambas, de nada valeu a inviolabilidade de seus reis, que nelas perderam a cabeça.
Enquanto Berlusconi tem se esquivado da justiça e de articulação parlamentar que o destitua, recrudesce a reabilitação do fascismo na Itália, com o perigo de que venha a tomar conta da Europa, onde não faltam grupos ativos da extrema-direita. Recente documentário do cineasta italiano Cláudio Lazzaro – Nazirock – mostra como já não se trata de ameaça, mas de realidade. Entre 2005 e 2008, houve 262 ataques violentos contra centros sociais, imigrantes e grupos de gays e lésbicas. A violência – que também se registra nos antigos paises socialistas – é particularmente odiosa contra os ciganos, negros, latino-americanos. Mais grave ainda – porque demonstra a grande adesão popular aos fascistas – foi a eleição de Gianni Alemanno, conhecido arruaceiro contra as esquerdas, para sindaco (prefeito) de Roma.
A tragédia da Itália tem sido a ausência de forças políticas de centro-esquerda, com tal peso que possam conter a nostalgia do fascismo de Mussolini, que se nutre dos velhos fantasmas do medo contra o diferente. Em suma, do racismo. A decisão da Corte de Roma está sendo aguardada com ansiedade pela consciência humanística da Europa.

O CARRASCO

O que surpreende no nacional-socialismo é a juventude de seus dirigentes. Quando Hitler decidiu criar o partido, em 1922, tinha apenas 31 anos. Goering tinha 29 anos; Goebbels, 27. Himmler tinha 23, quando participou do fracassado putsch de Munique; Heydrich entrou para as SS ao ser expulso da Marinha Alemã, aos 27 – e, aos 32, organizou a Gestapo.

Ao assumir o poder, o Führer tinha apenas 43 anos. Doze anos mais tarde, em 29 de abril de 1945, o nazismo chegava ao fim, com o suicídio de Hitler – e de Goebbels – no bunker de Berlim. Apesar disso, foram capazes de mandar em homens muito mais velhos, como os veteranos generais da Wehrmacht, e de empolgar pensadores aparentemente lúcidos, como Heidegger e Carl Schmitt.
A carreira mais surpreendente, e de final antecipado, foi a de Reinhard Heydrich. Filho de um músico apaixonado por Wagner, ele entrou para um corpo paramilitar de direita, em 1919, aos 15 anos e, aos 18, alistou-se na Marinha. Expulso em 1931, aos 27, entrou para as SS de Himmler. Em 1936, aos 32 anos, tornou-se chefe da Gestapo. Seis anos depois, em 5 de junho de 1942, como Protetor da Boêmia e Moravia, morria em Praga, justiçado por patriotas tchecos. Em represália, os nazistas arrasaram a aldeia de Lidice.
Heydrich foi considerado o mais cruel dos dirigentes nazistas. Os próprios alemães lhe deram o título de “Der Henker”, o carrasco.

MEMÓRIAS DA TRAIÇÃO

Em 30 de setembro de 1938 – onze meses antes do início da Segunda Guerra Mundial – a França e a Inglaterra “amarelaram” diante da arrogância de Hitler, e concordaram com a ocupação do território dos Sudetos, que pertencia à Tcheco-Eslováquia. Há duas explicações para que Neville Chamberlain e Édouard Daladier, primeiros ministros da Inglaterra e da França, tenham capitulado. Uma delas é a de que, assim fazendo, as duas potências teriam tempo a fim de preparar-se para o inevitável confronto com o nazismo. Essa explicação, sendo pragmática, justifica o pacto que Stalin estabeleceu, em agosto do ano seguinte, com Hitler. Stalin, não confiando no outro, teria autorizado a Molotov firmar o acordo, a fim de ganhar tempo para a mobilização de homens e recursos necessários ao conflito.

Se houve astúcia, salva-se um pouco da cara dos dois estadistas, por suas concessões crescentes, durante as conversações com Hitler, em Godesberg e em seu refúgio de Berchtesgaden e, mais tarde, em Munique. Ali, depois de ter aceitado a realização de um plebiscito na região dos Sudetos, Hitler voltou atrás e endureceu o jogo. Mussolini – que todos sabiam ser seu incondicional aliado – apresentou um plano de paz, pelo qual Hitler tinha tudo o que queria: a ocupação imediata do território em disputa, com a expulsão dos tchecos que o habitavam, e a plena soberania alemã na área.

Como se soube depois, o “Plano Mussolini” fora redigido pelos diplomatas nazistas. Hitler, ao apoderar-se, como se apoderou logo, da indústria bélica dos tchecos, reforçou a Wehrmacht para o seu avanço impetuoso sobre a Europa, no início de setembro do ano seguinte. O primeiro dos ensinamentos de Munique é o de que, nas relações internacionais, a confiança deve ser sempre relativa. Os tchecos contavam com o compromisso anglo-britânico de os proteger, compromisso que vinha desde 1918, com a vitória aliada contra os alemães na Primeira Guerra Mundial. Quando os franceses e ingleses lhes comunicaram o ultimato de Hitler, disseram-lhes que, se quisessem, resistissem com suas próprias forças. Era pedir a Davi que se desfizesse até mesmo de sua funda, e enfrentasse Golias com as mãos nuas. Os tchecos foram obrigados a submeter-se.

A segunda lição de Munique é a de que não há concessões que possam apaziguar os agressores. Os lobos não se contentam com um só cordeiro. Se não são escorraçados ou abatidos a tempo, devorarão todos os rebanhos em seu caminho.

Hitler já recuperara o Sarre, e anexara a Áustria meses antes, o que alterava o mapa geopolítico continental estabelecido em Versailles. Todos sabiam que o projeto – claramente exposto em seus pronunciamentos e nos papéis alemães – era o da conquista de todo o espaço vital a que tinham “direito” como povo de senhores, em razão da presumida superioridade racial.

Ao chegar a Londres, naquele dia abjeto, Chamberlain disse, orgulhoso, que a paz estava salva. Paz, ele disse, “com honra”: mas a honra foi a dos resistentes. Pelo adiamento do conflito por alguns meses, os ingleses e franceses renunciaram à própria dignidade e entregaram os tchecos, no primeiro ato da tragédia sangrenta, em qe pereceram mais de 40 milhões de seres humanos.